segunda-feira, 21 de março de 2011

Um Grito de Liberdade: filme para ver e refletir

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As cenas iniciais nos colocam no meio de um gueto. Poderíamos imaginar se tratar de mais um filme sobre o holocausto, não é. A palavra gueto é rapidamente associada ao genocídio dos judeus na 2ª Guerra Mundial praticado pelos nazistas. Nos parece que associá-la a outros momentos da história não é adequado, acreditamos que perseguições e violências semelhantes ao que ocorreu na Alemanha entre 1939 e 1945 não devam ter acontecido nas mesmas proporções em outras regiões do planeta.
No entanto, as imagens marcantes de crianças sendo espancadas, mulheres gritando em desespero, homens tentando se defender de agressões covardes e gratuitas nos são apresentadas. Tanques invadindo locais deploráveis, sem as mínimas condições de higiene, propícias ao surgimento de doenças, onde vivem pessoas aos milhares, estão ao alcance de nossos olhos. Impossível não se sensibilizar com tão evidente falta de humanidade. Estamos presenciando cenas da década de 1970, ocorridas na África do Sul, num sub-distrito de Capetown (a cidade do Cabo). As vítimas de toda essa insanidade são os negros, os agressores são os brancos.
Os registros que deram base para as fortes seqüências filmadas pelo premiado e experiente diretor inglês Richard Attemborough (o mesmo que filmou o épico "Ghandi") vieram de dois livros, escritos pelo jornalista sul-africano Donald Woods, que vivenciou os acontecimentos e pode, dessa forma, fazer relatos denunciando toda a violência e a intolerância características do regime de segregação racial sul-africano, o Apartheid.
Além de ter visto, ouvido e sentido na própria pele todo ódio incontido dos brancos em relação aos seus conterrâneos negros, Woods teve a oportunidade de viver proximamente ao ativista Stephen Biko. Inteligência privilegiada, Biko se tornou uma liderança respeitada dentro de sua comunidade desde os tempos em que era estudante, aproveitando-se das poucas chances de estudar concedidas pelos governantes brancos sul-africanos à maioria negra do país.
A estruturação da sociedade do apartheid fazia prevalecer a lógica mesquinha da divisão injusta dos meios e recursos, das oportunidades e bens materiais, legando a comunidade negra, majoritária em termos quantitativos, as piores condições de vida e de trabalho, a humilhação de ter que pedir autorização para se deslocar de um lugar para o outro, a separação de famílias para que pudessem sobreviver (os empregos eram concedidos em locais distantes, homens e mulheres acabavam se encontrando apenas nas folgas e nos finais de semana), os salários irrisórios, as moradias que eram verdadeiros guetos (favelas, cortiços ou como queiram chamar).
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A violência aplicava-se sob a égide de um estado de caráter fascista, a base de pancadaria e de submissão a condições totalmente desumanas. Woods (interpretado no filme pelo versátil Kevin Kline) é um jornalista liberal, que faz críticas a ação desmesurada do governo, mas que, vive em subúrbio luxuoso, afastado de toda a conturbação característica dos bairros pobres onde residem os negros. Parece atento ao que acontece ao seu redor, mas não consegue perceber todas as mazelas e diferenças que matam milhares, que mutilam outros tantos, que ferem os corpos assim como as almas. E o pior, tudo acontecendo por conta da diferença da cor da pele.
Biko (protagonizado pelo excelente Denzel Washington, premiado com o Oscar duas vezes, por seu desempenho em "Tempo de Glória" e "Dia de Treinamento"), é um dos alvos mais freqüentes dos editoriais escritos por Woods. Do alto de toda a sua sabedoria de membro da classe dominante, o jornalista acredita que a ação de líderes negros como Biko aumenta o ódio racial, faz crescer o número de situações de enfrentamento, distancia a comunidade negra dos brancos e estimula a segregação ao invés de combatê-la.
Quando Woods e Biko se conhecem, quebram as barreiras do silêncio impostas pelo estado racista a Biko e estabelecem conexões entre si que reforçam a idéia de que o diálogo, a compreensão e as concessões são o melhor caminho para solucionar o problema sul-africano. A admiração mútua logo se torna mais marcante e o carisma do líder Biko atinge em cheio o jornalista liberal que passa a utilizar seu espaço no jornal para pregar em favor do fim do apartheid. A perseguição aos negros atinge então seu confortável lar de classe dominante num luxuoso distrito reservado a elite branca.
O que lhe parecia distante, próprio dos subúrbios poeirentos em que residiam os negros, também podia chegar a sua casa, atingir a sua família, obrigá-lo a se calar. Os amargos "remédios" dados pelos racistas sul-africanos a Biko e a Mandela (preso desde a década de 1960 tendo sido solto apenas no final dos anos 1980) atingiam Woods. O doce sonho de que toda a situação vivida pelo país poderia ser superada às custas de planos de governo e boa vontade da população iam por água abaixo. Que alternativa resta senão a luta, que possibilidade se apresenta que não seja o enfrentamento. Biko acreditava ser possível alterar os rumos do país seguindo as máximas de Ghandi e Martin Luther King, sem violência.
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Qual foi o custo de toda essa verdadeira guerra civil que se instalou entre os sul-africanos? Quantos homens e mulheres morreram vitimados pela discriminação? As feridas desse verdadeiro genocídio podem se cicatrizar? Será que um dia superaremos todas as formas de preconceito e aceitaremos os outros como são? Assistir a "Um Grito de Liberdade" nos faz refletir sobre essas questões. Alimenta um debate que a humanidade ainda não conseguiu resolver. Permite que falemos sobre problemas que ainda existem. Apesar do fim do regime do Apartheid, será que a situação de vida dos negros na África do Sul melhorou? Como serão as relações entre negros e brancos nesse país hoje em dia?

Ficha Técnica
Um Grito de Liberdade
(Cry Freedom)
País/Ano de produção:- Inglaterra, 1987
Duração/Gênero:- 157 min., drama
Disponível em vídeo
Direção de Richard Attemborough
Roteiro de John Briley
Elenco:- Denzel Washington, Kevin Kline, Penélope Wilton.


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