quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Força e luta da mulher negra: Giane Vargas Escobar

 Foto: Antônio Jorge Ferreira/Divulgação.

A santa-mariense Giane Vargas Escobar receberá prêmio internacional pelo trabalho à frente do Museu Treze de Maio. Pesquisadora mora em Portugal, onde estuda doutorado em Estudos Culturais, pelas Universidades de Aveiro e Minho.


A GIANE POR GIANE

 
Um sonho
Ver a população negra nas Universidades, como alunos e como professores, em todas as áreas


Um medo

Parar de sonhar, pois são os sonhos e os anjos que me movem. Como diz a canção do grupo sueco ABBA _ que escutava na minha adolescência e terei oportunidade de estar no lugar de origem deles _ I believe in angels_ parte da canção I Have a Dream


Uma vitória

Quando lançamos, em 2003, o Projeto do Museu Treze de Maio e também a primeira edição do livro infanto-juvenil com recorte racial negro, Os Problemas de Júnior, de autoria da escritora Maria Rita Py Dutra. Além disso, acabava de ser criada a primeira Coordenadoria Municipal do Negro em Santa Maria. E em 2008, o primeiro vestibular com reserva de vagas e cotas raciais para negros na UFSM. O Museu Treze de Maio participou ativamente de todos esses processos. Vitórias coletivas, construídas com articulações, garra e luta da população negra de Santa Maria


Um dia inesquecível

Recentemente, quando recebi a notícia do International museum Prize winner 2014,por meio de uma mensagem de Hugues de Varine, consultor internacional na área de museologia e do desenvolvimento, ex-diretor do ICOM, o Conselho Internacional de Museus


Uma inspiração

Gostaria de citar quatro mulheres negras me deram e me dão força para seguir com firmeza a minha caminhada. Muito do que sou hoje é por que tive na minha vida mulheres inspiradoras: Jonbelina, minha mãe, Celanira, minha sogra e amiga, Angelina (in memoriam), minha avó materna e Amoreti (in memoriam), minha tia.

Por Luciane Brum - Diário Santa Maria


Pesquisa e postagem Oubí Inaê Kibuko para Cineclube Afro Sembene e Fórum África.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Cineclube Afro Sembene e Cojira convidam dia 20/9 sessão especial à Independência da República do Mali

A República do Mali
Segundo a Wikipédia: "Mali ou Máli cujo nome oficial é República do Mali, é um país africano sem saída para o mar na África Ocidental. Mali é o sétimo maior país da África. Limita-se com sete países, a norte pela Argélia, a leste pelo Níger, a oeste pela Mauritânia e Senegal e ao sul pela Costa do Marfim, Guiné e Burkina Fasso. Seu tamanho é de 1.240.000 km².

Formada por 8 regiões, o Mali tem fronteiras ao norte, no meio ao Deserto do Saara, enquanto a região sul, onde vive a maioria de seus habitantes, está próximo aos rios Níger e Senegal. Alguns dos recursos naturais em Mali são o ouro, o urânio e o sal.

O atual território do Mali foi sede de três impérios da África Ocidental que controlava o comércio transaariano: o Império Gana, o Império Mali (que deu o nome de Mali ao país), e o Império Songhai. No final do século XIX, Mali ficou sob o controle da França, tornando-se parte do Sudão francês. Em 1960, Mali conquistou a independência, juntamente com o Senegal, tornando-se a Federação do Mali. Um ano mais tarde, a Federação do Mali se dividiu em dois países: Mali e Senegal. Depois de um tempo em que havia apenas um partido político, um golpe em 1991 levou à escritura de uma nova Constituição e à criação do Mali como uma nação democrática, com um sistema pluripartidário. Quase a metade de sua população vive abaixo da linha de pobreza, com menos de 1 dólar por dia. Sua população é estimada em cerca de 12 milhões de habitantes. Sua capital é Bamako."

E é com este homônimo, que o Cineclube Afro Sembene, em parceria com a Cojira, realizará dia 20 de setembro de 2014, no Sindicato dos Jornalistas, a exibição do filme Bamako, de Abderrahmane Sissako, em sessão especial como parte das homenagens ao Dia da Independência da República do Mali, conquistada em 22 de setembro de 1960.

Bamako
Sinopse: Cidadãos africanos decidem processar as instituições financeiras internacionais pelo estado de endividamento em que se encontra o continente. O julgamento se instaura nos jardins de uma casa em Bamako. Só que os procedimentos legais são recebidos com indiferença pelos habitantes locais, que seguem adiante com sua rotina. Entre eles estão Chaka e Melé. Ela é cantora num bar, ele está desempregado, e a relação dos dois passa por um momento difícil.

Elenco: Aïssa Maïga - Melé; Tiécoura Traoré - Chaka; William Bourdon - Advogado da parte civil; Mamadou Kanouté - Advogado de defesa (como Mamadou Konaté); Gabriel Magma Konate - Procurador (como Magma Gabriel Konaté); Danny Glover - Cow-boy; Elia Suleiman - Cow-boy; Abderrahmane Sissako - Cow-boy (as Dramane Sissako).

Ficha técnica
Gênero: Drama, filme político
Diretor: Abderrahmane Sissako
Duração: 115 minutos
Ano de Lançamento: 2006
País de Origem: Mali
Idioma do Áudio: Francês e Bambara
Suporte: DVD

Premiações: Bamako participou da seleção oficial do Festival de Cannes de 2006, sendo exibido fora de competição. Ganhou o Grande Prêmio do Público nos Encontros Paris Cinéma de 2006.

Sobre o diretor*
Abderrahmane Sissako nasceu em 1961 em Kiffa, na Mauritânia, e passa sua infância no Mali. A partir de 1983, segue em Moscou o curso do célebre VGIK, o Instituto Gerasimov de Cinematografia, onde finalizará seus dois primeiros curtas-metragens: "Le jeu" e "Octobre" que será apresentado em 1993 na sessão "Un certain regard" do Festival de Cannes. A partir de uma encomenda de fábulas de La Fontaine, realiza "Le chameau et les bâtons flottants" em 1995 e em seguida um curta-metragem da série "Africa Dreamings", "Sabriya - le carré de l'échiquier", no qual dois homens evoluem em um café perdido num universo de areia. Em 1998, no contexto da coleção "2000 vu par…", ele roda "La Vie sur Terre", no qual interpreta a si mesmo, um cineasta vivendo na França e que, na véspera do ano 2000, parte para Sokolo, a aldeia maliana onde vive seu pai. Um "retorno ao país natal" cuja tessitura agridoce ecoa os textos de Aimé Césaire. Em 2002, Abderrahmane Sissako realiza na Mauritânia "Heremakono - En attendant le bonheur", que aborda em uma série de quadros sensíveis e significantes o exílio e as relações entre a África e o Ocidente. Selecionado em inúmeros festivais internacionais e notadamente em Cannes, onde obteve o prêmio da crítica internacional, o filme recebe igualmente o Étalon de Yennenga [prêmio mais importante] do Fespaco [Festival Pan-Africano de Cinema] de Ouagadougou [capital de Burkina Faso], assim como o Grande Prêmio da Bienal dos cinemas árabes de Paris. Em 2006, na casa de seu pai no Mali, ele roda "Bamako", no qual põe em cena um julgamento das instituições internacionais pelas injustiças a que submete a África. Selecionado fora de competição no Festival de Cannes de 2006, esse filme, lançado em 18 de outubro nos cinemas franceses, obteve o Grande Prêmio do Público nos Encontros Paris Cinéma.

Serviço:
Cineclube Afro Sembene e Cojira convidam
Sessão Especial Independência República do Mali
Bamako - direção de Abderrahmane Sissako
Dia 20 de setembro de 2014 - 18 horas
Sindicato dos Jornalistas de São Paulo
Rua Rego Freitas, 530 - sobreloja - entrada franca. 
Próximo ao metrô República e Igreja da Consolação

Informações:
www.cineclubeafrosembene.blogspot.com.br
Email: cineafrosembene@gmail.com
www.cojira.wordpress.com - www.sjsp.org.br - e nas Redes Sociais

Realização: Fórum África
Parceria: Cojira/Sindicato dos Jornalistas de São Paulo/UMSPB (União Malinesa em São Paulo-Brasil)
 

Subsídios para melhor compreensão do filme Bamako - resenha
por Olivier Barlet - Tradução Céline Dewaele.

Tradução eletrônica – texto original em inglês.

"A cabra tem suas idéias, mas o mesmo acontece com a ave". O camponês maliano quem diz isso está no banco das testemunhas de um tribunal criado em um pátio em um bairro popular de Bamako, para um julgamento que opõe a sociedade civil e as instituições internacionais da globalização, do FMI e do Banco Mundial em primeiro lugar. Durante estes debates ao vivo transmitidos através de um alto-falante externo, a vida continua no pátio: mulheres tingir batiks, um casal é casado, enquanto outro separa, as crianças vêm e vão. É no pátio seu recém-falecido pai que Abderrahmane Sissako queria filmar porque foi aqui, neste lugar cheio de vida, que ele cresceu e apaixonadamente discutido África com ele.

Construção Não? É claro, mas tão relevante que se torna convincente. Muito intelectual um debate? Como se pode pensar que as pessoas comuns não conseguem entender o que está se formando? Manthia Diawara já havia mostrado que em seu documentário Bamako Sigi-kan (O Pacto de Bamako): as pessoas comuns não são enganar; sua consciência é aguda, a sua reflexão sobre o mundo permanente. Eles perfeitamente compreender as palavras e as questões deste estudo porque eles experimentá-los diariamente em sua carne. E mesmo que as idéias expressas já são conhecidos por todos, dizendo-los novamente, transcendendo-los com a força de uma expressão artística, era necessário. A profunda emoção que se sente quando se compromete a abrir-se para esse filme vai muito além dos discursos trotou para fora sobre as falhas da globalização e as relações Norte / Sul. Provavelmente porque a complexidade aumenta, voltando para idéias simples é essencial, pois é para estes a ser ainda mais ancorada através da sensibilidade.

Como tinha que haver argumentação e de debate, um ensaio com os advogados e testemunhas era um pré-requisito, assim como no cinema americano! Como é urgente para se concentrar em idéias fortes para combater tanto o fracasso das apela ao sentido de identidade e de política comuns, os fundamentos de defesa tinham o seu lugar, com o fervor eo compromisso de sua retórica. É este tribunal que estamos a assistir a duplicidade dos países do G8 está exposta; os países do G8 que afirmam a sua boa vontade de cancelamentos de dívida amplamente coberto pela mídia, quando, apesar de já amplamente reembolsado, continua a sangrar secar os países capturados em um laço, o que os impede de prestar serviços sociais. "O laço" é o título de um livro de Aminata Traoré - ex-ministro da Cultura, em Mali-que é chamado para o banco das testemunhas aqui. Condenando o cinismo e desonestidade dos países ricos, este julgamento acusa o estupro da imaginação, tanto quanto a destruição dos serviços públicos orquestrados pelos ajustes dos planos culturais que só levaram ao fracasso. A oportunidade de falar é dado aos oradores, como Aminata Traoré como ou um professor brilhante, mas também e acima de tudo para as pessoas comuns. O summum de expressão e emoção é alcançado quando um camponês, Zegué Bamba, não é mais capaz tonelada conter o que ele quer dizer e, girando o mata-moscas, lança um longo lamento meia-falado / half-sung. Nós ouvi-lo tanto mais que as suas palavras não são traduzidas em legendas, portanto escapando tudo projeção exótica e redução. Comovente e profundamente digna, seu grito ecoa uma África que sofre, mas nunca dá.

Filmado em vídeo com cenas estáticas que intensificar o cerimonial, o julgamento convida juízes reais e advogados que estavam livres para desenvolver seus próprios argumentos. Eles são tudo o mais sincero e convincente. Eles ficaram o tempo para demonstrar e sua imagem não é fragmentado pela multiplicação de tiros, o que lhes permite ser credível. De tempos em tempos, os tiros de imagem no filme vêm enriquecer em vez de ilustrar o discurso. Aqueles dos migrantes voltaram para o deserto não é um copy / paste da história do outro no banco das testemunhas: em poucos tiros que arregimentam mais do que eles são avassalador, Sissako resume a desumanidade escandaloso com que a emigração é tratada. Aqui, as palavras são redundantes: como belos ecos cantando melancólicas de Oumou Sangare, tintura das mulheres dá a água avermelhada eo pano obtido invade a tela.

No meio do filme, embora existam advogados negros e brancos em ambos os campos, um episódio ocidental sphagetti hilariante com tanto ator Dany Glover e cineastas Elia Souleiman e Zeka Laplaine traz à mente, por sua construção mimética e uso de burlesco, o Retorno do Aventureiro por Moustapha Alassane, mas também se destaca como uma ilustração de intervenções das instituições internacionais. É realmente as pessoas negras que se livrar de "o professor que está no caminho": longe do discurso de uma vítima, Sissako relembra participação dos africanos no suicídio de seu continente.

Mas o Norte não podem ser tolerados. Sua responsabilidade é inevitável, já que estigmatiza a África de hoje para os problemas que se tem provocado, casualmente causas confusas e consequências, pauperização e da pobreza. Os advogados da sociedade civil exponha este ballet hipócrita que mantém a visão de um continente amaldiçoado fadado ao infortúnio e à corrupção vivo. Não haverá mais lágrimas, como os de Aïssa Maïga que canta tão bem. Utopia sozinho é tudo o que resta para evitá-los, este carneiro Africano que literalmente bitucas Mestre Rappaport, advogado das instituições internacionais. E essa utopia seria, por bem ou por mal, colocar essas instituições de volta ao serviço, não do capitalismo liberal, mas de homens, sua vocação original.

É luminosa, como este filme soberbamente lunar em que as mulheres são a principal força motriz, em que cada imagem tem sua própria beleza e estrato de significado. Além da consciência aguda da tragédia de África, um corpo solitário que só um cão se atreve a farejar, uma grande lufada de ar fresco é possível, se os ventiladores estão definidos no lugar certo. Se ao menos fosse feito: é a esta utopia que este belo filme chama; um filme que muito bem e profundamente marca tod

*Biografia e Resenha traduzida de Africultures
Fonte secundária: Making Off
Fonte primária: Africultures

Pesquisa e postagem Oubí Inaê Kibuko para Cineclube Afro Sembene e Fórum África.

Adbullah Ibrahim: A força da música forjada no apartheid da África do Sul



                                                         O músico Abdullah Ibrahim (Foto: Manfred Rinderspacher / Reprodução)

Quando nasceu, em 9 de outubro de 1934 na Cidade do Cabo, África do Sul, deram-lhe nome e sobrenome anglófonos – Dollar Brand. Na idade da razão, aos 34 anos, convertido à religião islâmica em 1968, passou a se chamar Adbullah Ibrahim. Estudou piano desde os 7 anos; aos 15 tocava nos Tuxedo Sclicker e Willie Max Big Band; aos 25 integrou o grupo The Jazz Epistles, com o qual gravou o primeiro disco de jazz por músicos sul-africanos.

Sua música emerge da vontade de lutar contra a discriminação racial em seu país e do cruzamento das canções tradicionais e folclóricas sul-africanas, música religiosa e o jazz. Tudo regado a uma sólida formação musical clássica. Um de seus discos, Mannenberg, gravado 40 anos atrás, transformou-se em símbolo da luta contra o Apartheid na África do Sul. Hoje, é um dos mais amados hinos de esperança, resistência e celebração da dignidade humana face à brutalidade daquele regime.

Além e acima de todos estes ingredientes ideológico-religiosos, Ibrahim é um músico notável pelo que produz artisticamente. Possui uma sonoridade própria, algo imprescindível no mundo do jazz.

Mukashi, o CD desta semana, recém-lançado por Ibrahim, é um exemplo de seu universo muito particular. Ele convoca um saxofonista e dois violoncelistas para esta "viagem" por seus temas originais. "Mukashi", em japonês, quer dizer ”era uma vez”. Apaixonado pela cultura japonesa, o pianista aprendeu artes marciais, que ainda hoje pratica, aos 79 anos. Cada uma de suas criações é uma história que conta para nossos ouvidos. Daí o título Mukashi. A escolha dos instrumentos que formam este quarteto instaura uma atmosfera de música de câmara. Como em "Serenity" e "Peace", por exemplo. Seu piano solo brilha, econômico, majestoso, calmo, porém sempre intenso, em "The stars will remember", "Cara Mia", "Root" e "Essence".  A maior influência jazzística sobre Ibrahim comparece nos angulares intervalos de "Trace Elements for Monk", um duo com a flauta de Cleave Guyton.

Um dos destaques de Mukashi é a suíte "Krotoa", retratando o encontro, no século 17, da nativa sul-africana Khoi com os primeiros colonos brancos europeus. Suas três partes intitulam-se "Crystal Clear", "Devotion" e "Endurance".

Faixas:

1. Mukashi
2. Dream Time
3. The stars will remember
4. Serenity
5. Mississippi
6. Peace (the ebb and flow of nature)
7. Matzikama (the place that gives water)
8. Cara Mia
9. Root
10. Trace Elements For Monk
11. Krotoa - Crystal Clear
12. Krotoa - Devotion
13. Krotoa - Endurance
14. In The Evening
15. Essence
16. The balance


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O cinema militante também conhecido como cinema politico

Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera, enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói
A manhã desejada
"E Vamos À Luta" - Gonzaguinha


Cinema militante é uma designação que pode ser entendida em sentido lato ou restrito. Em sentido restrito, refere-se ao cinema político inspirado nos ideais de Maio 68. Em sentido lato, refere-se também a uma prática de cinema que, usando do mesmo modo as técnicas do cinema directo, mais tarde se tentará afirmar defendendo outros ideais, como por exemplo os dos movimentos gay ou feministas.

Caracteriza-se por uma preocupação em se fazer sentir mais como forma de intervenção social ou política do que como forma de expressão artística, o que em geral confere aos filmes assim designados mais uma validade histórica do que estética. Há quem porém defenda, desde as primeiras horas do movimento, que será a própria dialéctica histórica e social o verdadeiro motor da força estética da obra, como o próprio Jean-Luc Godard proclama numa célebre entrevista que faz a Fernando Solanas, em 1970.

Características

Historicamente prefigura uma categoria de cinema político, cuja prática se manifesta essencialmente na área do documentário. É um «cinema do real», que se caracteriza pela intervenção, social ou política, num determinado contexto histórico e numa perspectiva de esquerda. Ágil, usa as novas técnicas do cinema directo: gravação de som directo e câmaras portáteis de 16 mm. O propósito dos seus autores não é o espectáculo, não é a venda de um bem de consumo, é outro tipo de propaganda. É o uso da câmara como arma ideológica, é a crítica antiburguesa, é uma certa didáctica do progresso, é o debate tendo em vista uma sociedade justa, por via do socialismo. As ideias ganham corpo na revolução em curso, o cinema vira manifesto.2

O termo torna-se corrente a partir dos finais dos anos cinquenta, em França, com os acontecimentos do Maio 68: quando o cinema se torna proletário, quando o fabrico de imagens animadas cai nas mãos dos operários. A ideia, no que tem de arrojada, alicia notáveis obreiros e leva-os a acesos debates. Jean-Luc Godard, erguendo bem alto o «Livro Vermelho», é um dos que não hesitam. Filma La Chinoise e avança para o combate com o Grupo Dviga Vertov (1968 / 1972), de onde sairão filmes como British Sounds, Pravda, Vent d'Est, Luttes en Italie, Jusqu'à la Victoire, Vladimir et Rosa, Tout va Bien e Letter to Jane. Iluminados pelas ideias novas, jovens críticos e teóricos de cinema relevam a importância do género. Militando com Godard, assumem-se como maoístas Les Cahiers du Cinema. 1970 será o ano de maior actividade em França dos grupos maoístas, como La gauche proletarienne, ou La cause du peuple,

O cinema militante – cujo personagem central é operário ou camponês – mostra greves, ocupações de fábricas ou de terras, movimentos renovadores em curso. Serve por vezes apenas para ilustrar um momento histórico importante numa óptica revolucionária. O movimento terá importantes seguidores e vasta expressão em países da América Latina, África, México, E,U.A. França e Portugal a partir do inicio dos anos setenta. Enquanto noutros países o filme político se caracteriza em geral como forma de contestação dos regimes vigentes, em Portugal o género, associado ao movimento do Novo Cinema, diferencia-se pelo facto de ser representado por filmes que sustentam o «processo revolucionário em curso».

Ditas assim as coisas, parecem pertencer ao passado. Mas – note-se – tudo no cinema é ilusão.

História

A definição do termo cinema militante é formalizada nos Estados Gerais do Cinema de Maio 68, com o manifesto «Para um Cinema Militante», que proclamava «a rotura ideológica com o cinema burguês» e o «uso da câmara como arma política». A ideia fora já explorada em França, em anos anteriores, mas sem significativas consequências.

O IDHEC, a escola oficial de cinema, aderindo ao movimento grevista, os Estados Gerais e certas agências de filmes publicitários filmam as greves, as manifestações, os eventos da Sorbonne e do Odéon. Grands soirs et petits matins, de William Klein, é uns dos filmes desse cinema. Será a obra de referência dessa época La reprise du travail aux Usines Wonder, um filme em plano-sequência de cerca de dez minutos feito pelos alunos do IDHEC, filme que regista as discussões entre os operários grevistas das fábricas Wonder. Devem os operários regressar ou não ao trabalho? Jacques Rivette refere-se ao filme nestes termas: «é um momento em que a realidade se transfigura ao ponto se pôr a condensar toda uma situação política, em dez minutos de uma incrível intensidade dramática».

Costuma considerar-se como o primeiro filme do cinema militante Loin du Vietnam (1967), obra colectiva contra a guerra do Vietnam, com assinaturas de Alain Resnais, Agnès Varda, Jean-Luc Godard, Joris Ivens, Jean Rouch, Ruy Guerra, René Vaultier. O filme é produzido sob os auspícios de Chris Marker e de Mario Marret.

Surge entretanto o Grupo Medvedkine: operários de Besançon e de Sochaux, que, junto com cineastas profissionais, aprendem a filmar e acabam por realizar Classe de lutte, obra de referência. Outros filmes surgem: Humain trop humain (1972), de Louis Malle, sobre as fábricas Citroen, Nouvelle Société, uma série de reportagens alternativas à televisão, feita por operários.

O Grupo Dziga Vertov é comandado por Godard – que o funda com o lançamnento de La Chinoise – e outro, o Grupo Dynadia (mais tarde Unicité) é afiliado do PCF.

Os agentes desta primeira vaga de militância agrupam-se na década de setenta em unidades colectivas, como o ISKRA (antigo SLON, fundado em 1967 por Chris Marker). São fundadas duas unidades por alunos e professores do IDHEC, O Atelier de Recherche Cinématographique (ARC) e o Cinélute, liderado por um grupo radical maoísta. A maior parte destes grupos desfaz-se durante a década de setenta. Chris Marker reaparece em 1977 com Le Fonds de l’air est rouge, um filme sobre dez anos de lutas revolucionárias no Maio de 1968 e em países como o Japão, a África, o Chile.
Em Portugal

É nesta vertiginosa sequência de imagens que surge a Revolução dos Cravos. Dir-se-ia haver algo no mundo de então dando azo a essas coisas.

Sem que alguém o previsse, uma delas acontece em Portugal. De um momento para o outro, o cantinho torna-se centro das atenções: imagens animadíssimas de uma revolução em curso num país da Europa, com importantes responsabilidades estratégicas em África, onde mantem uma desastrosa guerra colonial. As imagens entram no mainstream da época. Imagens simpáticas, é certo, mas perturbadoras: mostram uma tremenda explosão de alegria, um arreigado sentimento colectivo de esperança, um acérrimo empenho, uma praxis dura, apontando para uma sociedade renovada, num futuro em construção. Imagens algo idênticas às que se vira há pouco tempo por outras bandas, e com graves consequências: na América Latina, no Chile de Salvador Allende.

É este neste quadro que, finalmente libertos, os cineastas portugueses se lançam na aventura, tornando-se agentes do «processo revolucionário», unidos, apesar de militarem ou apostarem em diferentes partidos, do PS à extrema esquerda, como é o caso de Eduardo Geada ou de Alberto Seixas Santos que, fã de Jean-Luc Godard e Jean-Marie Straub (en - Wiki), é um dos mais empenhados radicais do cinema. Era inquestionável: o alinhamento é uma necessidade vital, um imperativo ético. O mesmo que sentiram em França os alunos do IDHEC, o mesmo que sentiu quem filmou Loin du Vietenam (obras colectivas que denunciam o gosto da militância) sentia-o agora, recuperando o fôlego dos colegas franceses, que esmorecia, um grupo significativo de realizadores e técnicos portugueses, que, logo ao primeiro sinal de mudança, resolve fazer também criar obra colectiva: As Armas e o Povo.

A iniciativa colectivista dos kinoki portugueses, dos «operários do cinema» da época (técnicos e realizadores), faz-se sentir em várias frentes, sendo uma das mais importantes o Sindicato dos Trabalhadores do Filme (mais tarde Sindicato dos Trabalhadores da Produção do Cinema e Televisão - STPCT). A principal vitória obtida na luta é a ocupação do Instituto Português de Cinema, o que significa ter meios técnicos ao alcance da mão e uma gestão justa dos fundos destinados à produção. Formam-se assim no IPC as Unidades de Produção. Virão logo a seguir as novas cooperativas, extinguem-se as Unidades. A reviravolta explica-se por motivos de ordem política. O fim do PREC altera as regras do jogo.

Filmes (documentário)
 
longas metragens

1974

    Lisboa, o direito à cidade de Eduardo Geada

1975

    As Armas e o Povo (colectivo)
    Liberdade para José Diogo de Luís Galvão Teles
    Deus, Pátria, Autoridade de Rui Simões (cineasta)
    Que farei eu com esta espada? de João César Monteiro

1976

    Acção, Intervenção: colectivo da cooperativa Cinequanon
    Fátima Story de António de Macedo
    Continuar a Viver ou Os Índios da Meia-Praia de António da Cunha Teles

1977

    Contra as Multinacionais (colectivo da Cinequipa)
    25 Canções de Abril: colectivo orientado por Luís Gaspar (cineasta)
    Terra de Pão, Terra de Luta de José Nascimento
    A Lei da Terra: colectivo do Grupo Zero
    Torre Bela (filme) de Thomas Harlan

1980

    Bom Povo Português de Rui Simões (cineasta)

médias e curtas metragens

1974

    28 de Setembro / 6 de Outubro – 1974 de José de Sá Caetano

1975

    Cooperativa Agrícola da Torre-Bela de Luís Galvão Teles
    Ocupação de Terras na Beira-Baixa de António de Macedo
    Unhais da Serra — Tomada de Consciência Política numa Aldeia Beirã de António de Macedo
    Construção Civil (filme) da Unidade de Produção Cinematográfica nº1 – IPC (colectivo)
    Beja, um povo que se levanta de Alfredo Tropa

1976

    O Outro Teatro de António de Macedo
    Assim começa uma cooperativa do Grupo Zero (colectivo)
    Barronhos: quem tem medo do poder popupar? de Luís Filipe Rocha
    Avante pela Reforma Agrária da Unidade de Produção Cinematográfica nº1 (colectivo)
    S. Pedro da Cova de Rui Simões (cineasta)
    Pela razão que têm de José Nascimento (Cinequipa)
    A Luta do Povo do Grupo Zero (colectivo)
    Applied Magnetics da Cinequipa (colectivo)
    De Sol a Sol da Cinequipa (colectivo)
    Deolinda da Seara Vermelha de Luís Gaspar (cineasta) - IPC
    Greve na Construção Civil da Cinequanon (colectivo)

1977

    O Rendeiro de Luís Gaspar (cineasta)
    Operação Boa Colheita de Luís Gaspar
    1º de Maio de 1977, Grande Jornada de Luta da Unidade de Produção Cinematográfica nº1 (colectivo)

1978

    Julho no Baixo Alentejo de José Nascimento

filmes estrangeiros

1974

    25 Avril de Jacques Comets

1975

    República (filme) do Newsreel (Robert Kramer) – sobre o Jornal República
    Milho Verde de Paolo Sornaga – os objectivos do MFA

1976

    Setúbal, ville rouge - longa-metragem de Daniel Edinger - o poder popular em Setúbal em Outubro 1975
    On the side of the people do Newsreel (Robert Kramer) - a classe operária e o MFA

1977

    Scenes from the class struggle in Portugal (longa-metragem de Robert Kramer do Newsreel)

Fontes

    O Cais do Olhar de José de Matos-Cruz, ed. da Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1999.
    Programa da Mostra Internacional de Cinema de Intervenção (1976) (Centro de Intervenção Cultural) - Lisboa
    IPC (fichas de filmes)

NOTA: Na prática do cinema de intervenção, a par dos filmes estritamente militantes, produziram as cooperativas um número importante de filmes didácticos, ao serviço da revolução em curso, em boa parte destinados à televisão.
Teorias e militâncias

Na sétima, como nas outras artes, o valor de uma obra só será negativo se ela for insignificante, isto é, se a obra for destituída de significado, se nada transmite: se não corresponde a nenhuma forma de verdade, se, no mínimo, não nos toca os sentidos. Para ser arte, e por o ser, tem de conter alguma verdade naquilo que dá a ver e ouvir. Tem de ser sempre e de qualquer forma «cinema verdade». E, tão importante como isso, tem de algum modo de nos tocar o coração, a «câmara na mão vale tanto como a caneta ou a charrua».

A crítica de «bom gosto», no cinema, com boas razões, procura sempre justificá-las pela teoria. Mas cai muito em tentação, estabelecendo regras – as do «bom» gosto – e fazendo disso militância. Postura imprudente. Pelas opções que faz, pelo estilo, por ter uma base instável (o gosto), corre sempre o risco de ficar velha. Mudam-se os tempos, mudam-se as sensibilidades. Aquilo que hoje nos parece insignificante poderá ser amanhã visto como tendo um significado imprevisto. As transformações históricas trazem-nos surpresas. Às tentas somos forçados a rever as coisas, a ver outra vez o fita, agora com olhos diferentes. Refresca-nos as ideias. Pode até despertar-nos os sentidos.

Imbuídos do élan militante que animava o documentário, cientes dos riscos que corriam, alguns dos kinoki portugueses tentam a ficção e fazem obra: obras que, acabado o PREC, ficam esquecidas. Esse «cinema do real» e as ficções tecidas em torno do tema terão o mesmo destino.

Obras falhadas? Retóricas? Obras «marcadas», «imperfeitas», «impuras»?. Qual o sentido do esquecimento? Maior ainda do que aquele a que foi votado o documentário que retrata o homem, em geral ou particular, e não em termos de classe: filmes inócuos mas impertinentes? A sua provável imperfeição não justifica a indiferença. O real que traduzem, mais coisa menos coisa, toca-nos sempre o coração.
A ficção militante

    1970 – Nojo aos Cães de António de Macedo
    1975 – Os Demónios de Alcácer Quibir de José Fonseca e Costa
    1975 – O Funeral do Patrão de Eduardo Geada
    1976 – A Santa Aliança de Eduardo Geada
    1976 – Ofensiva Popular de António Faria (curta-metragem)
    1977 – A Confederação – o povo é que faz a história de Luís Galvão Teles

Umas e outras, estas e outras obras mal vistas na história «oficial» do cinema português, são indiciadoras. Vistas em sincronismo histórico com outros factos mostram coincidências que reforçam a noção de que os teóricos do bom gosto se tornaram poder. O efeito causado por certos filmes da época fechou portas a certos realizadores e abriu-as aos mais abertos, aos que prometiam. Algumas das portas fechadas não mais se abriram.

Fonte: Wikipédia - Cinema Militante/Cinema Político


Pesquisa e postagem por Oubí Inaê Kibuko para Cineclube Afro Sembene e Fórum África.

3ª Mostra de Cinema “Olhares Sobre Angola” aconteceu na Cinemateca Portuguesa

A mostra de cinema Olhares Sobre Angola regressa de 2 a 3 de julho à Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema para a sua terceira edição. Depois do sucesso da última edição, com várias sessões esgotadas, Olhares Sobre Angola volta a um dos mais nobres espaços de exibição cinematográfica lisboetas, com uma programação integralmente dedicada ao cinema produzido em Angola, permitindo ao público português conhecer os novos autores deste país e aproximar-se desta cultura em atual efervescência.

Tudo começou na quarta-feira, às 19H, com a projecção de Angola, Ano ZeroO documentário vai ser apresentado pelo realizador Ever Miranda Palacio e convida-nos a entrar na nova realidade angolana através de um diálogo entre emigrantes, após 30 anos de guerra civil. Às 20H decorre a apresentação e lançamento do DVD “Mariano Bartolomeu – Curtas-Metragens 1989 – 2008”, com a presença do realizador. Hereros Angola de Sérgio Guerra é exibido na sessão de abertura, às 21h30, um documentário sobre o grupo étnico com o mesmo nome, habitantes das terras do sudoeste de Angola, povo Bantu. Os Herero são donos de uma tradição ancestral que é passada oralmente de pais para filhos.

No segundo dia, quinta-feira, 3 de julho, às 15H30, foi hora de Aprender a Ler Pra Ensinar Meus Camaradas, do realizador João Marques Guerra, documentário musical que acompanha a jornada de dois músicos angolanos, Wyza Kendy e Dodó Miranda, que viajam até a Bahia-Brasil em busca de traços de uma ancestralidade perdida e retrata uma herança angolana fora de Angola e reencontrada através da música. Mais tarde, às 19H tem lugar a sessão Fragmentos com uma seleção dos melhores videoclips e vídeos experimentais realizados na última temporada em Angola.

Nesta sessão foram exibidos os videoclips Mais e Técnologia do Ancião de Nástio Mosquito, realizados por Vic. Pereiró; Nzala Remake – MCK e Paulo Flores, uma animação de Lindomar e Olimpio de Sousa; Flamingo City e Kazukuta de Paulo Azevedo; Sentinela e Milapse of Luanda Smooth and Rave de Jorge De Palma e Apné de Binelde Hyrcan. Às 19h30, inaugura-se uma nova secção “Olhares Sobre…”, que pretende colocar em foco a obra de profissionais do cinema angolano. Nesta terceira edição, a mostra de cinema coloca os “Olhares Sobre… Mariano Bartolomeu” e traz à sala Luís de Pina uma seleção das curtas-metragens, sendo que o realizador em foco Mariano Bartolomeu vai estar presente nesta sessão. A última sessão  decorre às 22hna sala Luís de Pina com Death Metal Angola de Jeremy Xidoum filme que segue o sonho de Wilker e Sonia – organizar o primeiro concerto de rock nacional, juntando membros da cena musical hardcore angolana de várias províncias. A narrativa avança, aos solavancos, no cenário bombardeado e minado do outrora imponente Huambo.

Na sala 6X2 e com entrada gratuita, durante os dias 2 e 3 de julho das 13h30 às 21h30 foram apresentados em sessão contínua e projetada em DVD filmes em depósito no ANIM – Arquivo Nacional das Imagens em Movimento da Cinemateca Portuguesa, a saber: Eu Sou, Eu Era, Eu Quero Ser Pioneiro Político de Henrique Ruivo Alves (Ritz); Rebita de realização coletiva coordenada por Manuel Costa e Silva; Kizomba, Velha Guardaum filme que fazia parte do projeto Ngoma (jornais culturais), uma realização coletiva que contou com a participação de Leonel Efe e de Alberto Sebastião, entre outros; Ngudi a Khama Cokwes de Manuel Mariano e Alberto Sebastião e Os Meus Irmão Cokwes de Manuel Mariano

Clique aqui e confira a programação completa.

Fonte: Cinemaville

Pesquisa e postagem por Oubí Inaê Kibuko para Cineclube Afro Sembene e Fórum África.

Locarno: o cinema argentino é superior ao brasileiro?

Festival vai ter 17 filmes em estreia, a competir pelo Leopardo de Ouro

Ler mais em: http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/ultima-hora/producao-lusofona-em-destaque-no-festival-de-locarno
Festival vai ter 17 filmes em estreia, a competir pelo Leopardo de Ouro

Ler mais em: http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/ultima-hora/producao-lusofona-em-destaque-no-festival-de-locarno
Festival vai ter 17 filmes em estreia, a competir pelo Leopardo de Ouro. Os filmes argentinos também estão em destaque no Festival de Locarno, mas isso não coloca a questão de se o cinema argentino é superior ao brasileiro ou vice-versa, apenas mostra a diferença de culturas dentro do cinema latinoamericano com destaques diferenciados e sucessivos em cada ano no Festival, destaca o crítico de cinema italiano Carlo Chatrian, no seu segundo ano de direção do Festival Internacional de Cinema de Locarno.

Pergunta - Como se explica a presença marcante, este ano, do cinema brasileiro?

Carlo Chatrian - A seleção do Festival não é feita segundo um critério geográficos mas escolhe-se filmes que nos surpreendem, nos tocam e nos agradam. É o caso do filme de André Mascaro, Ventos de Agosto, na competição internacional, que nos tocou por sua enorme beleza visual e por uma abordagem especial do corpo e os espaços. Trata-se de um pequeno relato, não há um drama, como num ambiente restrito íntimo, ligado à praia. O mar tem uma participação especial como uma barreira. É um filme que nos surpreendeu. O realizador já fez diversos documentários e é a primeira vez que se defrontou com uma ficção.

Temos também na mostra Sinais de Vida, um filme ousado, dentro do espírito de Locarno, dos irmãos Pretti, com experiência na realização de filmes, Punhos Cerrados, um filme alegre e muito humor grotesco, dentro da beleza estética.

No ano passado, tivemos Julio Bressane e este ano, esperamos, serão descoberto, espero.

Pergunta - E, dentro da lusonia, temos o cinema português, também presente.

Carlo Chatrian - Temos na competição internacional o filme Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa, grande cineasta não só português como mundial, e o filme de Edgar Pera, Lisboa Revisitada, que toma como ponto de partida uma frase do poeta Fernando Pessoa, e a linguagem de Pessoa não é só lusófona como plural, pois o filme é falado também em francês e inglês. Eu acho que o cinema português é sempre vivo e rico e tenho o máximo prazer em acolhê-lo.

Pergunta - E a presença dos filmes latinoamericanos confirma ser uma cinematografia forte?

Carlo Chatrian - Não só em Locarno, mas em Cannes, Veneza, Berlim, sem esquecer o Festival de San Sebastian, onde ainda é mais marcante, o cinema latinoamericano está sempre presente e este ano, aqui em Locarno, tem uma presença ainda mais forte e realizada. Mas quero acentuar não se tratar de uma exigência geográfica essa presença, foram os filmes latinoamericanos que se impuseram.

Os filmes de Martin Rejtman, Dos Disparos, e de Matias Pinheiro, La Princesa de Francia, ambos argentinos, são inovadores em matéria de linguagem cinematográfica, algo incrível. O filme do uruguaio Arauco Hernandez, Los Enemigos del Dolor, misturando ficção científica com realismo extremo, é surprendente, e para nós um prazer tê-lo em Locarno pois recebemos pouca coisa desse país. (Nota do redator - este filme é uma co-produção com o Brasil). Ha outro filme argentino, Favula, de Raul Perrone, cineasta conhecido por suas exsperimentações e que neste filme quer reatualizar o cinema mudo.

Pergunta - Podemos falar numa enorme diferença entre os filmes latinoamericanos de idioma espanhol e os filmes brasileiros em português. São muito diferentes ou têm pontos comuns que os aproximam?

Carlo Chatrian - Sim, eles são extremamente diferentes, como o cinema francês é diferente do cinema italiano. O cinema é uma questão de cultura, não apenas de línguas. Cito o filme mexicano deste ano, Navajazo, de Ricardo Silva, e o filme uruguaio já citado - são próximos mas bastante diferentes, mesmo falados no mesmo idioma. O mesmo caso entre filmes argentinos e uruguaios, geograficamente muito próximo mas com culturas diferentes. Mesmo ce maneira inconsciente os filmes refletem a história de cada país, e o tratamento das cores é igualmente diferente. É verdade que a formação internacional dos cineastas e os meios comuns de realização os aproximas. Um cineasta, por exemplo, como o mexicano Carlos Reygadas tem uma relação muito próxima da Europa e seus filmes mostram isso, mas é sempre complicado se fazer generalizações sobre os realizadores.

Pergunta - existem dois brasileiros nos júris de Locarno, como foram escolhidos?

Carlo Chatrian - Helvécio Marins é um amigo do Festival, com filmes já mostrados em Locarno, e colaborou conosco na seleção de curtas-metragens. Gostei muito do seu filme Grimunho, primeiro longa-metragem. Quanto a Alice Braga é uma grande atriz e acho ser uma pessoa que pode representar o Brasil. Este ano o Brasil também está em destaque pela Carta Branca, pela qual diversos filmes em pós-produção serão mostrados para produtores e compradores e Alice Braga traz o filme Latitudes, feito pelo realizador Felipe Braga, que embora com o mesmo sobrenome não é de sua família.

Pergunta - E o Festival de Locarno dá igualmente um destaque para o cinema africano de língua portuguesa, quando têm sido esquecido pelos outros festivais...

Carlo Chatrian - Este ano um destaque é dado aos filmes da África Subsaariana de língua portuguesa e inglesa, uma quinzena de filmes recentes e menos recentes, que para muitos serão uma verdadeira descoberta. Alguns são políticos outros pessoais, mas todos permitem uma visão dos países de onde vêm.

O cinema africano enfrenta sérios problemas para criar novos filmes, problemas de produção, financeiro mas principalmente dificuldade de encontrar uma linguagem própria. Espero que essa mostra paralela africana, não só com o objetivo de mostrar mas de criar condições para se fazer novos filmes, possa dar novo fôlego ao cinema africano.

Rui Martins


Fonte: Pravda

Pesquisa e postagem por Oubí Inaê Kibuko para Cineclube Afro Sembene e Fórum África.

O cinema político africano e o direito de narrar

  por Marcelo Ribeiro

O texto abaixo aborda o filme Bamako (2006), de Abderrahmane Sissako, a partir de uma revisão do conceito de cinema político. Dando continuidade à experiência de análise crítica de filmes que propus antes, procuro descrever as características estéticas do filme de Sissako, como uma base para interpretar as questões políticas absolutamente contundentes que o filme movimenta.


– O conceito de cinema político –
Um dos gêneros mais importantes dos cinemas africanos é sem dúvida o chamado cinema político. A denominação “cinema político” não está isenta de problemas – afinal, que critérios podem orientar a classificação? – e remete, em última instância, à própria definição de política – e, portanto, aos lances do jogo etimológico que liga a forma clássica da polis grega às formas contemporâneas de coletividade (em diversos níveis que, hoje, tendem a tomar o enquadramento nacional como referência, embora não se reduzam a ele). Entretanto, apesar do problemas, o conceito de cinema político permanece relevante, desde que seja deslocado.


Uma das objeções mais radicais ao conceito (no sentido de atacar suas raízes, seus fundamentos) costuma tomar a forma de uma generalização: “todo cinema é político”, dizem por exemplo Eduardo Valente e Ruy Gardnier num editorial da Contracampo, uma vez que “toda ação humana é em si política”. No entanto, partir de um conceito amplo de política e dizer que “todo cinema é político” pode nos impedir de compreender as configurações cinematográficas da questão da política, simplesmente por tornar impossível reconhecê-las. Não se trata de saber o que define restritivamente o cinema político – como se fosse possível aplicar critérios temáticos para classificar um filme como político ou não, de acordo com uma concepção bastante usual da política como esfera separada da vida coletiva. Sem dúvida, a força dessa concepção se deve à adesão, muitas vezes cega, aos discursos dominantes nas democracias representativas ocidentais, que diferenciam formalmente a política da arte, da economia ou da religião, entre outras, e neutralizam, dessa forma (pelo desconhecimento e pela recusa de reconhecimento), as múltiplas zonas de indeterminação em que as esferas da vida coletiva se indiferenciam.


Um dos sentidos do deslocamento necessário para o conceito de cinema político consiste na passagem de uma concepção restrita da política como esfera separada (o que poderia ser chamado mais certamente de governo, como sugere a Flávia Cera) para uma concepção generalizada da política como construção de um mundo comum. Assim, o cinema político não designa apenas o conjunto de filmes que retratam a esfera da política (no sentido restrito) e os políticos – como é o caso do contundente Xala (Ousmane Sembène, 1975) – nem tampouco os filmes que abordam temas geralmente discutidos na esfera da política (isto é, objetos de políticas públicas governamentais, tanto em âmbito nacional quanto internacional) – como é o caso de Moolaadé (Ousmane Sembène, 2004). Com efeito, a intensidade política desses e de outros filmes do senegalês Ousmane Sembène resulta, em parte, do fato de não abordarem a política como esfera separada, impedindo sua sacralização como espaço decisório.


Precisamos devolver ao cinema sua potência política. Em primeiro lugar, é preciso saber em que consiste a potência política do cinema – de todo cinema – incluindo, entre outros tipos de filmes, as comédias românticas mais individualistas (afinal, o pessoal é o político) e as ficções científicas mais apocalípticas (afinal, se a política como esfera separada se preocupa com o futuro previsível do planejamento governamental, a política irrestrita se interessa no porvir como advento, sempre monstruoso, do novo). Contudo, em vez de dizer simplesmente que “todo cinema é político” (arriscando um esvaziamento da questão da política que corresponde, como seu oposto completo, à sua separação), é preciso reconhecer que, se todo cinema tem (ou pode ter) efeitos políticos, na medida em que existe no mundo comum, o cinema político consiste num certo tipo de cinema (e não todo cinema): aquele que se engaja no questionamento e na exploração de seu próprio caráter político. Se, do ponto de vista de seus efeitos, todo cinema é potencialmente político (porque pode produzir efeitos no mundo comum que compartilhamos), do ponto de vista de sua intencionalidade e, principalmente, de suas características estéticas, só é político o cinema que interroga e intensifica a sua própria potência política, disseminando sua deriva interrogativa.


– Bamako como cinema político –
Um dos propósitos mais recorrentes dos cinemas africanos consiste na busca por outras imagens da África e de suas paisagens culturais. Diante do exotismo colonialista que se prolonga no regime ocidentalista de escritura da ‘África’ e se investe com o que Edward Said chama de “poder de narrar” (e, portanto, de excluir outras narrativas), os cinemas africanos têm como impulso originário, mesmo que eventualmente subterrâneo e inconsciente, a reivindicação do direito de narrar. Eis a sua condição política originária. No entanto, se todos os cinemas africanos carregam a potência política da reivindicação do direito de narrar, o cinema político africano pode ser identificado naqueles filmes que interrogam e exploram (de forma consciente, por assim dizer) a questão da política da narrativa como condição originária de sua própria existência. É justamente o que está em jogo no filme Bamako (2006), de Abderrahmane Sissako, que faz soprar novos ares na tradição mundial do cinema político ao construir e desconstruir, ao mesmo tempo, um dispositivo ficcional: o julgamento de um processo da “sociedade civil africana” (representada pelo povo do Mali) contra as instituições financeiras internacionais (representadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional) e suas políticas de ajuste estrutural, seus ditames econômicos sabidamente desastrosos, seu papel reconhecidamente problemático na promoção global da insustentabilidade.


O processo se passa no quintal de uma casa em Bamako e esse cenário – que é a casa do pai de Sissako – exemplifica um recurso importante do cinema de Sissako: a autobiografia, que para ele deve se desdobrar como abertura para o outro (um tema que merece ser abordado a parte, quem sabe, em outro texto). O dispositivo elaborado pelo diretor consiste em três câmeras fixas destinadas à captação do julgamento – uma voltada para a corte, duas voltadas para a bancada de testemunhas (uma frontal e outra lateral) – e em uma câmera em movimento – que passeia pelo quintal, mostra ângulos diferentes da corte, dos advogados e das testemunhas, registra os movimentos da plateia e as inúmeras irrupções do cotidiano que interrompem o processo, introduzindo seu ritmo mundano na mecânica regrada do julgamento e se fazendo registrar igualmente pelas câmeras fixas. Entre os diversos elementos do cotidiano, adivinham-se os traços sugestivos, embora incompletos, de outras “memórias de gênero”, suplementando o “filme de tribunal”: um melodrama familiar se desenrola entre Melé e Chaka, um casal cuja filha está doente e cuja relação passa por uma crise profunda, enquanto um detetive realiza uma investigação policial em torno do sumiço ou do roubo de uma arma. Entre os fios narrativos articulados, embora disjuntos, o que se entrevê são os afazeres e os acontecimentos mais variados que compõem um panorama do cotidiano – mulheres tingindo tecidos, crianças brincando e chorando, a celebração de um casamento etc.


No julgamento, a parte civil é representada por uma equipe encabeçada pela senegalesa Aïssata Tall Sall e pelo francês William Bourdon, enquanto a defesa fica por conta da equipe do burquinabê Mamadou Savadogo, do maliano Mamadou Konaté e do francês Roland Rappaport. São advogados e advogadas profissionais que interpretam a si mesmos como outros, assumindo posições na tecelagem da ficção do processo, como atores não-profissionais (o que exemplifica de forma contundente a herança neo-realista que marca o cinema de Sissako). É curioso o exemplo de Roland Rappaport: no filme, ele é o responsável pela argumentação final da defesa das instituições financeiras internacionais; fora do filme, sua atuação como advogado o aproxima justamente da posição contrária, de questionamento do papel dessas instituições no mundo contemporâneo. A corte é composta pelo presidente do tribunal, Hamèye Founé Mahalmadane, assessorado por Mariam Cissé, Alou Diarra e Oumou Berithé Diakité. À busca por profissionais do direito se acrescentou a busca por testemunhas, que foi feita sobretudo junto a associações. Por fim, as pessoas da cidade foram convidadas para o julgamento, cujos depoimentos assistem de dentro do quintal ou escutam do lado de fora, cujos trâmites ignoram, interrompem ou respeitam, cujo desfecho aguardam ou antecipam.


A partir de suas trajetórias e de seus conhecimentos, os depoimentos que as testemunhas oferecem movimentam diversas questões cruciais para as políticas governamentais contemporâneas (remetendo à concepção restrita de política da modernidade): a produção agrícola e industrial e a organização dos mercados nacionais e internacionais; as privatizações, o papel dos Estados nacionais e seu desmonte no contexto do neoliberalismo; as migrações e as experiências de deslocamento que povoam as faces da Terra. A escritora Aminata Dramane Traoré, ex-Ministra da Cultura do Mali, argumenta que a África é vítima de suas riquezas, e não da pobreza. Madou Keita narra uma experiência trágica de migração através do deserto. O professor Georges Keita discute as economias nacionais dos Estados africanos e seu papel nos problemas que os países do continente enfrentam. Samba Diakité recebe a palavra para ser ouvido pela corte mas, depois de dizer seu nome e outras informações exigidas pelo protocolo, permanece calado sobre todo o resto, com um silêncio contundente. Assa Badiallo Souko denuncia as políticas de privatização em meio ao neocolonialismo das multinacionais.


Em Bamako, o aparelho cinematográfico acolhe um acontecimento singular, abrigando na ficção – no cerne do falso que existe apenas para aparecer na tela – uma potência política que permanece contida, silenciada e neutralizada na realidade jurídico-política em que nos encontramos. Em Bamako, o cinema começa a fazer justiça, suplementando a injustiça perpetrada pelas instituições que se inscrevem paradoxalmente sob o signo da justiça, da humanidade e da cooperação internacional. A justiça que se faz pelo cinema – e que permanece interminável, por vir – encontra seu impulso primeiro no desejo de dar uma outra imagem da África (e do mundo) e na reivindicação de um direito de narrar. Esse desejo e essa reivindicação constituem não apenas a condição originária dos cinemas africanos, como afirmei acima, mas também temas centrais que atravessam Bamako e ligam os depoimentos das testemunhas, o julgamento como dispositivo, as interrupções que o cotidiano acarreta… entrelaçando todos os fios da narrativa.


O julgamento se abre – antes mesmo de começar – com a questão da palavra, de sua potência e de sua dádiva interdita: o camponês Zegué Bamba se dirige à corte sem que lhe tenha sido dada a palavra e tem sua participação interditada pelo tribunal. A palavra interdita no início – isto é, proibida, mas também: dita nas margens, nos interstícios, nos intervalos do processo da história – assombra todo o julgamento, até que, mais à frente no filme, seu fantasma toma corpo numa irrupção, interrompendo os trâmites protocolares: com um canto inesperado, entre o pleito final da defesa e aquele da parte civil, Zegué Bamba faz soar uma língua que, para a maioria dos espectadores do filme, permanecerá estrangeira (pois Sissako não oferece qualquer legenda), exceto pela menção a ela no pleito da parte civil. Em todo caso, na bancada de testemunhas – que representa, no dispositivo do julgamento, o lugar da transparência comunicativa da palavra – o canto de Zegué Bamba introduz a opacidade incompreensível de uma estrangeiridade, que remete ao que Nwachukwu Frank Ukadike chama, no livro Black African Cinema, de “African traditional media”, isto é, mídias ou meios tradicionais africanos (o que costumamos designar com o nome de tradições orais). Assim como o canto de Zegué Bamba, a narrativa de Madou Keita e o silêncio de Samba Diakité introduzem na bancada de testemunhas o tema do direito de narrar.


Outra instância do tema do direito de narrar é o faroeste Death in Timbuktu, em que o próprio Sissako, o diretor palestino Elia Suleiman, o ator estadunidense Danny Glover, o diretor congolês Zeka Laplaine e outros representam uma estranha paródia dos westerns que povoam a imaginação cinematográfica mundial e que constituem uma das heranças mais marcantes de Hollywood. Reunidos diante da televisão, crianças, homens e mulheres assistem ao trecho de um filme inexistente. Segundo Sissako, Death in Timbuktu “foi uma maneira de mostrar que os cowboys não são todos brancos e que o Ocidente não é o único responsável dos males da África. Nós temos, nós também, nossa parte de responsabilidade.” A interpretação do diretor revela uma outra dimensão da questão do direito de narrar: juntamente com reivindicação da possibilidade de narrar sua própria história e de que ela seja reconhecida por outrem, o direito de narrar codifica, em Death in Timbuktu, a possibilidade de assumir a responsabilidade por sua própria história. (Um lado perverso e ambivalente do humanismo ocidental consiste justamente na vitimização do outro que se pretende salvar – desde a “missão civilizadora” que alimentou o projeto colonial até os discursos de ajuda humanitária e solidariedade transnacional que se associam cada vez mais a intervenções militarizadas – como se o outro não fosse capaz de agir por si mesmo, de modificar suas condições e de lutar contra os problemas que o afetam, precisando por isso de ajuda externa.) A violência gratuita dos cowboys, que assassinam um dos dois professores de um povoado (pois dois é demais, como dizem), remete à situação recorrente, na África pós-colonial (analisada, entre outros, por Achille Mbembe), de privatização do poder por figuras de autoridade que, em geral, se beneficiaram de sua atuação política nacionalista na luta pela independência e se converteram em ditadores que orientam seus governos para seus ganhos pessoais.


É sobre o pano de fundo da condição pós-colonial na África que pode se tornar legível o sonho de Samba Diakité, contado a Fodé e a Jean-Paul do outro lado do muro do quintal, depois de cortado o som do auto-falante que transmite o julgamento: “Eu tenho toda noite um sonho que me perturba. [...] Eu estou na escuridão… a luz… Em todo caso, não estou em casa. Nesse sonho, estou sentado e, diante de mim, há um grande saco. Ele está cheio de cabeças de chefes de Estado. Cada vez que eu mergulho minha mão lá dentro, é a mesma cabeça que eu pego. E quando eu a coloco de volta, meu sonho acaba e eu acordo. [...] Eu não sei se é um negro ou um branco. Em todo caso, é a mesma cabeça.” Exterior ao julgamento, o sonho perturbador de Samba Diakité tem como objeto central os chefes de Estados africanos, que são mencionados literalmente nos depoimentos e aparecem metaforicamente (ao menos na minha leitura) como parte do pano de fundo que dá sentido a Death in Timbuktu. Sem pretender interpretar de forma mais sistemática o conteúdo manifesto que as palavras de Samba Diakité reconstituem como seu sonho recorrente, seu pesadelo assombroso, que o assola a cada noite, é possível dizer que se trata de um dos elementos vitais (sejam fictícios ou não, pouco importa) que transbordam o enquadramento do dispositivo fictício do julgamento, num movimento crucial para a compreensão do filme.


A justiça que só o cinema se revela capaz de fazer, de criar, no dispositivo fictício elaborado por Sissako, não equivale a uma representação da justiça institucional (isto é, à encenação de um julgamento convencional, mesmo que imaginário), ultrapassando incessantemente suas fronteiras. Para fazer justiça, o aparelho cinematográfico deve se manter aberto: o filme só constrói a ficção na medida em que desconstrói seu dispositivo, abrigando inúmeros traços da vida que pulsa no cotidiano, no sonho de Samba Diakité, nos tecidos que as mulheres tingem, nas crianças que passeiam pelo quintal, no bar ao som das músicas cantadas por Melé. A construção da ficção do julgamento se entrelaça com a desconstrução de seu dispositivo, impulsionada pelas irrupções da vida, isto é, pelo que acontece – e isso inclui, em última instância, a morte. É o que se passa entre Melé, seu marido Chaka e sua filha Ina, delimitando um eixo melodramático que atravessa o filme e, embora não tome conta de seus ritmos, dá a seu desfecho um peso simbólico talvez insuportável. Diante da morte, o cinema de Abderrahmane Sissako assume, em Bamako, a tarefa política de imaginar – outra-mente – a vida possível.

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Marcelo é pesquisador e professor nas áreas de cinema e antropologia. Atualmente, é estudante de doutorado em Estudos Cinematográficos na Université de Montréal, onde desenvolve pesquisa sobre cinema e cosmopolitismo. - Blog do autor

Fonte: Cine África - Cinema político

Pesquisa e postagem por Oubí Inaê Kibuko para Cineclube Afro Sembene e Fórum África.