sobre livro de Guido ConventsOs Moçambicanos
Perante o Cinema e o Audiovisual. Uma história político-cultural do
Moçambique colonial até à República de Moçambique (1896-2010).
Estou a ver o Guido Convents à minha frente, como
se diz em português moçambicano, com seu ar solene, vagamente
nostálgico, ou não fosse ele filho desse “Plât Pays” de que falava Brel,
cantando-o, em francês. Que me perdoe ele a referência à língua de
Yourcenar, agradável alusão, adivinho-a, para Monsieur. Pedro Pimenta,
seguramente sentado a seu lado. Circunstância que dá une Belgique
linguística e inusitada em Maputo. Guido Convents é de etnia flamenga.
Não se riam…
Vejo-os
porque há um filme batendo na cabeça que permite estas misteriosas
artes de sangoma. Que ninguém se assuste e não trema a voz a Cristiana
Pereira, esforçada leitora destas palavras de inscrição, que não de
circunstância. Ao público presente, aos cineastas e a todos os amantes
do cinema, aquele Abraço.
Os Moçambicanos perante o cinema e o audiovisual –
uma história político-cultural do Moçambique colonial até à República de
Moçambique (1896-2010), que tive a honra e o prazer de rever, é
uma obra seminal, pioneira.Trata-se do primeiro e abrangente olhar sobre
o que foi a exibição, recepção e produção de imagens no imenso e belo
território à beira-Índico pulsando. Obra extensa, com rigores
metodológicos e profusa bibliografia, não deixa de se constituir como
uma narrativa, em caleidoscópio, desse “mundo do cinema”, como gosta de
salientar o autor, presente em Moçambique quase imediatamente após a
céllebre sessão dos irmãos Lumière, em Paris. Estava Ngungunhane a
começar a sofrer o seu exílio, nos Açores, tumultuava a terra
moçambicana no começo de uma saga de ocupação que só terminaria em 1975.
Como humilde copy desk, não me cabe fazer a apresentação
da obra. Devo dizer que, diante de tanto texto, às vezes escrito em
“belguês”, me senti como o tipógrafo-revisor Raimundo, da obra de
Saramago, tentado a mudar uma simples vírgula, não para adulterar a
prosa, mas para conseguir abraçá-la por inteiro e de uma vez,
restituindo-a à língua de Craveirinha. Mas como ganguissavam as
palavras!… Só espero não ter falhado muito. Se notarem uma ou outra
gralha, deixem-me ao menos subir às palmeiras, para citar o verso de
António Jacinto e título do filme de Joaquim Lopes Barbosa, cujo, em
sessão clandestina, vi no estúdio de Courinha Ramos, na antiga
Latino Coelho.
Sobre o livro falarão, decerto, outros e mais
autorizados leitores e especialistas. Eu não passo de um fantasma, uma
tela de palavras, cuja articulação, sentido e som, vos chega na pausada
leitura de Cristiana Pereira.
O que pretendo é fazer uma declaração de amor. Não se
surpreendam nem tirem conclusões apressadas… Sou obrigado a este texto
por irrecusável directiva de Pedro Pimenta. É ele o responsável.
E a declaração de amor tem como objecto de desejo essa magia de luz e som que dá pelo nome de cinema.
Com
este trabalho de Guido Convents dei por mim a fazer um imenso flash
back. Vi-me a subir o elevador do Prédio Paulino Santos Gil para ir
pagar as quotas do Cine-Clube, a descer do Alto Maé à baixa para
assistir à estreia, no Varietá, do Lawrence da Arábia, de David
Lean, com o velho porteiro e contínuo, o Picão, a dar-nos calduços no
toutiço, que era o preço de uma entrada de borla, nós, espécie de “les
enfants du paradis”, sozinhos, com um pirolito e um remexer de bolsos a
ver se ainda dava para uma Coca-Cola. E a tarde de sábado, britânica…
suspiraria Reinaldo Ferreira. Rememorei o que me contou José Craveirinha
sobre as sessões no cinema popular que ficava na 24 de Julho onde é
hoje o Museu da Revolução. E voltei a ver o letreiro já muito esbatido
de um certo cinema “Variedades”, no Alto Maé, em cuja construção um avô
colonial e pedreiro trabalhou.
Ao
filme interior, que esta obra de Guido Convents me suscitou,
acrescentou-se a aprendizagem de tanto “facto/fado” ligado à aventura
das imagens em Moçambique. Porque se trata de um livro com interessantes
surpresas. A começar pela pelicula que se estreia no famoso cinema
Império, da avenida de Angola. Depois, a rede de exibição que a Igreja
católica, mas também outras confissões, mantinham junto da então chamada
população indígena. O que eles viram meu Deus! Não se riam.
Tendo como fonte principal O Brado Africano,
Guido Convents fornece-nos matéria para melhor percebermos como as
diversas camadas que então constituíam a sociedade colonial se
posicionavam em relação ao “mundo do cinema”: do proselitismo imperial e
confessional ao posicionamento, com inquietações identitárias, das
diversas camadas dos chamados filhos da terra. E de como o cinema, anos
mais tarde, já em pleno impacto da luta de libertação, serviu como
medidador e metaforização do debate político urbano sobre a afirmação
nacional moçambicana. E foi instrumento de propaganda e divulgação da
luta armada.
Do pós-independência falarão os ilustres apresentadores
da obra. Aliás, atenta e minuciosa segunda parte deste livro. O que me
ocorre é perceber o imenso interesse que o fenómeno cinemaográfico em
Moçambique está a suscitar entre estudiosos, um pouco por todo o mundo, e
de como nos pertencem também, aquelas imagens que os outros fizeram
sobre nós. Mesmo as que estejam eivadas das singulares e imperiais
retóricas que bem conhecemos.
Como ósculo final - happy end, portanto -, para esta misteriosa dama
de Xangai na sua sala de espelhos, não queria deixar de homenagear os
cineastas moçambicanos, cuja difícil e já significativa aventura, em
meio de tantas dificuldades, teima em prosseguir.
Lendo esta obra de Guido Convents, percebe-se que há um desafio de
produção, de exibição e de cultura que urge continuar. Há uma Cinemateca
por criar. Há uma Lei do Cinema que é imperioso regulamentar, agilizar,
adequar às realidades concretas do país.
O
cinema moçambicano é parte do acervo histórico nacional, e uma
ferramenta poética para perceber o presente e perspectivar futuros; é
património cultural, a par da nossa literatura, da pintura, da
escultura, do teatro, do canto e da dança, podendo espelhá-las a todas,
essas belas e malasartes, mais a imensa riqueza linguística e
diversidade de que é feita a invenção real e utópica da nossa
plural identidade.
Last, bu not least, uma saudação a Pedro Pimenta e ao DocKanema, esse
supremo atrevimento de Festival a querer colocar Maputo no road map do
cinema africano.
Com um aceno de felicitações a Guido Convents, sugiro que comecem agora a falar a sério.
Kanimambo.
Fonte: Buala
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