A escola não é um dado. Ela
nem sempre existiu, e tampouco sempre foi do jeito que conhecemos hoje.
Em sua construção e consolidação como instituição social, ela passou
por diversas transformações e foi moldada por determinados setores. É o
que o professor Jurjo Torres, em entrevista ao Portal Aprendiz, chama de currículo oculto da educação.
Lembrando da imagem do Cavalo de Troia, Torres afirma que
existem muitas aprendizagens não intencionais, ou seja, que não estão no
programa do professor de maneira expressa. “São as consequências das
cosmovisões e ideologias nas quais fomos educados e assumimos como
‘naturais’, ‘óbvias’ e ‘lógicas’.
Uma ideologia, quando se torna hegemônica, se plasma em
determinadas práticas, rotinas, tradições, motivações e interesses que,
de uma maneira consciente e reflexiva, nós não tratamos de trazer à luz,
investigar, analisar e questionar. Esses tipos de tarefas que
programamos e que cremos que são educativas pois são parte do ‘senso
comum’, ‘sempre foram assim’, ‘aprendi assim’”.
E como isso se dá numa sociedade com passado escravocrata e um presente que ainda padece de diversas formas de racismo?
Essas e outras perguntas estão presentes na pesquisa de
Stela Guedes, doutora em educação e professora do Programa de
Pós-Graduação em Educação da UERJ (PROPED-UERJ) e autora do livro “Educação nos terreiros – e como a escola se relaciona com crianças de candomblé”, lançado em 2012.
Ao longo de 20 anos de pesquisa, a professora buscou
analisar o preconceito contra religiões de matriz africana no ambiente
escolar e as dificuldades da implementação da lei 10.639, de 2003, que
prevê o ensino de cultura e história afro-brasileira e africana nas
escolas e descobriu que, para os estudantes de religiões afro que
frequentam as instituições de ensino brasileiras, esse é o espaço onde
mais se sentem discriminados.
“Uma vez entrevistei uma professora de Ensino Religioso que
afirmava que a disciplina não era proselitista e não discriminava e
que, na mesma resposta, comemorava o fato de ter tido no ano anterior 8
alunos ogans que se converteram ao cristianismo (ogan é um cargo
masculino cuja responsabilidade são muitas, entre elas, tocar os
atabaques nos rituais). A escola, que é o lugar dos diferentes entre si
por natureza, deveria ser o lugar mais preparado para não só lidar, mas
também para aprender profundamente com essas diferenças. Infelizmente
não é”, afirma Stela.
Para ela, a “escolarização pública em nosso país foi e
continua sendo marcada pelo espírito de catequese” e precisa ser
transformada. A pesquisadora, que ministrará neste mês o curso “A escola e o terreiro: diversidade e educação antirracista em pauta”, em São Paulo, conversou por e-mail com o Portal Aprendiz,
sobre os resultados de sua pesquisa, o caráter racista da educação
brasileira e os possíveis caminhos para uma educação antirracista e
transformadora. Confira:
Portal Aprendiz: Bom, começaria com o título de seu livro:
como a escola se relaciona com as crianças do Candomblé? Quais foram as
principais descobertas dos seus mais de 20 anos de pesquisa?
Stela Guedes: A escolarização pública em
nosso país foi e continua sendo marcada pelo espírito de catequese. Não é
difícil entender o porquê. Em 1549, trazidos pelo governador geral Tomé
de Souza, três jesuítas chegam ao país e, em Salvador, fundaram o
colégio da Companhia de Jesus. Duzentos e dez anos depois, quando os
jesuítas foram expulsos do Brasil, o ensino público passou para as mãos
de outros setores da igreja católica. Quase 500 anos depois e, apesar
de, em 1891, a primeira Constituição republicana ter separado Estado de
Igreja e afirmar que “será leigo o ensino ministrado nos
estabelecimentos públicos”, o papel da escola pública ainda é catequisar
e converter. A conversão é um conceito amplo e não se refere apenas a
conversão religiosa. A conversão é uma submissão à lógica dominante que
aí sim diz respeito a uma padronização em função da religião dominante,
aos valores dominantes conservadores sobre família, sexualidade,
aparência, raça, ou seja, aos modos de ser, estar, crer, não crer e agir
no mundo. Dentro dessa lógica a escola não acolhe as diferenças entre
elas, as diferenças religiosas. Em mais de 20 anos de pesquisa todas as
crianças e jovens de candomblé são unânimes quando afirmam que todos os
espaços da sociedade são cruéis, mas nenhum lugar é tão cruel quanto a
escola quando se trata de humilhar e excluir alunos e alunas de
candomblé ou umbanda.
Aprendiz: Que tipos de impactos sociais uma educação intolerante e racista pode trazer?
Stela: Primeiro, temos de reconhecer que o
Brasil é um país racista. Esse é o primeiro passo para olharmos para os
espaços sociais e entendermos que todos eles são espaços racistas. Isso
porque o racismo é um sistema em que um grupo se considera superior e
submete de diversas formas um outro grupo considerado inferior. O mais
fundamental é, ainda, entender que fomos educados em uma escola branca,
cristã e racista. Então a pergunta deve ser “Que tipo de impactos e
consequências a nossa sociedade e, portanto, a nossa educação racista
nos trouxe? Que tipo de relações criamos?” A dominação colonial na
África, como bem se refere o pesquisador Kabengele Munanga, com sua
missão “civilizadora”, teve como objetivo reduzir negros e negras
ontológica, epistemológica e teologicamente. Isso fez com que os países
colonizadores se servissem de seus saques econômicos e históricos.
Roubaram por séculos a riqueza material e a história dos povos de
África. No nosso caso, negros e negras escravizados não “contribuíram”
com a formação do que se chama “povo brasileiro”. Foram os negros e
negras roubados, aprisionados, desterrados e escravizados que ergueram
esse país. Uma das consequências quando um grupo de seres humanos passa
a se achar superior a outro grupo de seres humanos é a total subtração
da história do grupo considerado inferior. Essa foi uma consequência
drástica na educação brasileira. A história de um continente inteiro foi
subtraída de nossas escolas. Não se trata de ser tolerante. Nenhum
indivíduo ou grupo quer ser tolerado. A tolerância, apesar de ser um
conceito aparentemente interessante, é sempre uma ação que prevê alguma
benevolência ou aceitação daquele ou do grupo considerado como
referência nas tensas e complexas relações de poder. Ou seja, não
podendo te eliminar eu te tolero. Não podendo eliminar este ou aquele
grupo eu os tolero e aceito. A tolerância sempre exige algum grau de
assimilação e estabelece limites. Uma vez ultrapassados os limites do
jogo da assimilação, o tolerante deixa de tolerar.
Aprendiz: Como a educação poderia se relacionar com
os diferentes tipos de saberes? Você saberia mencionar alguma
experiência em que um terreiro e uma escola se articularam para discutir
história e cultura-afro?
Stela: A escola não tem de tolerar pessoas
as quais considera diferente de sua lógica hegemônica. A escola precisa
reconhecer que a vida no planeta é constituída por seres humanos
diferentes. A escola é o lugar dos diferentes e, por ser esse lugar, a
escola é um lugar tenso, porque não há harmonia na diferença e nem pode
haver. O ideal é que busquemos a convivência respeitosa entre pessoas e
grupos. E essa convivência respeitosa, essa experiência intercultural
pautada nos direitos humanos não acontece se um dado conhecimento for
erguido ao reino da importância e, portanto, legitimado, enquanto outros
tantos conhecimentos são submetidos ao reino da desimportância e,
portanto, deslegitimados e excluídos das escolas. A escola deve
reconhecer o conflito e apostar nele, para que, a partir das diferenças,
todos e todas possam ser vistos e compreendidos uns pelos outros. Não
conheço experiências como as que você menciona, conheço projetos
individuais de alguns professores e professoras que tentam fazer com que
alunos e alunas conheçam terreiros e falem na escola a partir dessa
experiência.
Aprendiz: O que mudou desde a aprovação da lei Lei 10.639?
Stela: A Lei 10.639 foi sancionada em 2003
e diz que nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira. Todos os pesquisadores e pesquisadoras que estudam a
aplicação da lei descrevem inúmeras dificuldades. Falta formação para
professores e professoras e o obscurantismo crescente na educação também
é um dado que dificulta. Professores, professoras, pais, alunos e
alunas, funcionários obscurantistas acreditam que qualquer referência à
África é um passaporte para o inferno, pois associam África ao Diabo.
Como isso aconteceu? Com a mesma inferiorização dos povos africanos
sobre a qual falávamos há pouco. A lei foi uma conquista importante, mas
temos muito a caminhar e é preciso uma luta cotidiana contra o racismo,
incluindo as faculdades de formação de professores e professoras.
Aprendiz: Porque as crianças afirmam que a escola é
o lugar que mais discrimina? Como se dá essa discriminação? Como isso
afeta a auto-percepção dessas crianças?
Stela: Por toda essa realidade racista e
obscurantista que estamos tratando aqui em todas as perguntas. Uma vez
entrevistei uma professora de Ensino Religioso que afirmava que a
disciplina não era proselitista e não discriminava e que, na mesma
resposta, comemorava o fato de ter tido no ano anterior 8 alunos ogans
que se converteram ao cristianismo (ogan é um cargo masculino cuja
responsabilidade são muitas, entre elas, tocar os atabaques nos
rituais). A escola, que é o lugar dos diferentes entre si por natureza,
deveria ser o lugar mais preparado para não só lidar, mas também para
aprender profundamente com essas diferenças. Infelizmente não é. Por
isso, muitas crianças e jovens sofrem porque são inferiorizados e
inferiorizadas.
Aprendiz: Que tipo de aprendizados podem sair dos
terreiros? Como eles podem contribuir para uma educação antirracista e
focada nos direitos humanos?
Stela: Os terreiros de candomblé são espaços de
circulação de imensos conhecimentos. Crianças, jovens e adultos cultuam
seus ancestrais e, se não podemos dizer que o Candomblé é uma religião
africana porque é brasileira, podemos dizer que o culto aos ancestrais é
comum em toda África. Os negros e negras escravizados para o Brasil
chegaram aqui com seus ancestrais e nos ensinaram a amá-los a
cultuá-los. Para poder fazer isso, criamos o candomblé que, nos
terreiros, foi mantido e ressignificado. As línguas dos povos africanos
que aqui chegaram é mantida nos terreiros pela oralidade, e isso se
aprende todos os dias, há séculos, em cada casa de axé. História,
geografia, biologia, ecologia, filosofia, literatura. Um conjunto de
conhecimentos poderosos passados de geração em geração e do qual
crianças e jovens se orgulham, mas que, nas escolas, são obrigados a
sentirem vergonha daquilo que os anima e os faz viver. A educação nos
terreiros não é racista, não discrimina as diversas orientações sexuais,
as famílias que se organizam e se formam a partir dessas diferentes
orientações sexuais. O candomblecista não discrimina qualquer outra
religião. Acredito que, por ser assim, a educação nos terreiros pode
ensinar o antirracismo e o humanismo do qual precisamos todos os dias.
Fonte: Portal Aprendiz
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